domingo, 29 de novembro de 2009

De peito aberto


Kurt Halsey

Me lembro como se fosse hoje, nos anos 80, uma matéria na Veja onde vários médicos, numa das primeiras conferência sobre a Aids, comentavam que no futuro a doença seria crônica.
De lá pra cá, a doença que no início era algo distante se apresentou, no decorrer destes anos, de várias formas mais próxima.
No começo era um assunto tão longe das nossas vidas. Vivíamos alienados de certa forma. E só dávamos devida atenção à ela quando afetava as estruturas do nosso mundinho particular.
Hoje não conheço ninguém que já não a tenha visto de perto em algum amigo, parente ou em alguns casos em si mesmo.
Perdi um primo, que morou um tempo nos Estados Unidos, bem no início da descoberta por aqui e vivemos a relutância e o medo do desconhecido na própria área da saúde. No hospital que ele foi internado, alguns enfermeiros se recusavam a atendê-lo e no choque em que a minha família se encontrava relevamos o receio destes profissionais frente a ignorância e o desconhecido que gera o preconceito. Eu mesma, uma garota de 16 anos na época, vivi de forma distante todo o desenrolar deste drama. Não sei se era defesa ou não. Estava naquela fase “autista” da vida adolescêntica, preocupada somente com o meu umbigo e inflada no meu ego. Foi complicado, sofrido, mas tudo aconteceu muito rápido. Me lembro que ele faleceu numa véspera de feriadão e eu já estava de mochila pronta pra Jurerê / SC no final do enterro. A minha mãe ficou braba comigo, achava que eu não deveria ir e blábláblá, mas o meu pai comprou a briga com ela, me levou pra rodoviária e embarquei feliz para encontrar com amigas de São Paulo naquele paraíso. Claro que sofria pelo meu primo que se foi, mas enquanto a morte o abraçava, a vida tinha urgência em viver dentro de mim. Não preciso dizer que com o passar dos anos pensei muito no que ele viveu, quem ele era e tudo o que compreende os que já foram e a saudade que habita nos que ainda estão por aqui, mas a roda da vida gira.

Às vésperas do Dia Mundial de Luta contra a Aids, em 1º de dezembro, gostaria de falar sobre o amor nos tempos de Aids, aquele que reforça o desprendimento da razão e se apega ferozmente ao sentimento maior e mais sonhado por todos.
São insanos, são ilógicos ou simplesmente  guerreiros corajosos os que sublimam o amor acima do medo, do perigo e enfretam de peito aberto o desconhecido a espreita? Falo dos casais com uma condição peculiar cada vez mais comum nos tempos atuais: os sorodiscordantes.Um dos parceiros tem o vírus e o outro não.
Estes casais convivem, entre os lençóis, com o vírus dia após dia. Superação pode ser o sobrenome destes casais soldados?  Cúmplices na íntegra. Muitas vezes é a ajuda mútua que faz com que o infectado lute para viver. É uma carga extra de vontade na sua luta. É uma injeção de força e de fé no outro.
É uma história de amor dos nossos tempos. Mais uma forma de amar entre várias que tanto tentamos classificar desde que o mundo é mundo e cultua o bendito amor e suas faces.
Ficar ao lado de um parceiro soropositivo é uma prova de amor a toda a prova. É uma roleta russa para os que enfrentam o mundo e a ciência em nome de algo muito maior. E com fé seguem driblando as estáticas e as previsões. Burlando as possibilidades e quebrando paradigmas. Nos fazendo rever conceitos e certezas tão arraigadas nas nossas crenças, por vezes tão torpes de pobres mortais.
Nenhuma relação passa incólume ao HIV, ele devasta quem está por perto além do organismo afetado de forma direta, mas com certeza torna mais sólida qualquer relação depois dele.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Desautorizando a carência

Nos nutriram desde a mais tenra idade de que um dia encontraríamos alguém especial. Ele (a) seria um ser único e especial, faria diferença nas nossas vidas. Teria um peso, peso este que com a expectativa cada vez mais alta tornou a maioria dos relacionamentos um peso pesado, um fardo a cada relação apostada, a cada cobrança. Esta idéia nos alimentou, nos saciou em alguns casos e nos deixou esfomeados em outros, mas seguimos na estrada acreditando no sonho de que alguém nos tiraria do marasmo, da mesmice. Nos resgataria não sei bem do que. O salvador (a) vai chegar, isto sempre latejando na mente, a cada vacilada. O bálsamo da dor, um láudano. Alguém nos fará feliz. Juntos seremos um só, entre altos e baixos. Caminhará conosco no inverno e no verão das nossas vidas.
Precisamos nos desautorizar a viver esta expectativa tão alta para então nos alforriar, nos liberar da frustração. Deixar de pensar neste salvador (cheio de responsabilidade, coitado), parar de ser um mero coadjuvante da novelinha da nossa vida e coemçar a atuar de forma definitiva na nossa história particular. Dono (a) do seu destino e participante ativo (a) das escolhas e rupturas que vão acontecer.
Dispa o santo e livre-se das amarras que te fazem ficar a espera de algo que talvez você nem queira, é só mais um papel a cumprir nas normas já estabelecidas da dita sociedade.
Livre-se do peso das altas apostas e talvez com leveza você ganhe a partida.
Quem sabe assim você consiga prestrar mais atenção em quem foi e em quem veio na sua vida. E você talvez vá menos e ele (a) venha mais.
Desautorize o sentimento da espera, da ânsia que te faz esperar por alguém tão iluminado, aprenda que Paris, a cidade luz, pode já estar iluminando a relação que acontece agora, com alguém ou com você mesmo.
Desautorize a sensação de alguém deve te resgatar. Te resgatar do que e pra que?
Desautorize a certeza. Que certeza você tem na vida? Somente a morte é certa, o resto é falácia. Até amanhã de uma nova manhã, tudo pode virar entre rotações e translações.
Autorize sim a esperança de fazer parte do cardápio, mas jamais deixe a responsabilidade do seu caminho ser guiado por outras mãos que não a sua. A mão do destino é uma coisa, a dos outros já não sei que coisa pode vir a ser.
Desacredite nas teorias de que todas as relações tem um propósito claro e objetivo, muitas pessoas entram nas nossas vidas e saem sem sabermos porque nos visitaram por um tempo. Deixa quieto em alguns momentos, nem tudo tem que ter explicação ou fazer sentido.
A idéia preconceituosa de que alguém vai bater a sua porta e instituir a felicidade geral na sua rotina é somente um sinalizador de que as coisas vão mal. Não deposite nos outros aquilo que é de responsabilidade somente sua. As suas realizações, os seus agrados e seus mimos.
Só depende de você e se a mente e a alma vão bem, quem entrar na sua vida amorosa vai curtir contigo uma relação mais prazerosa porque a transferência e a compensação não vão ter espaço na agenda de vocês.
A partir destas autorizações, as relações começam a deixar de ser um meio e passam a ser somente um caminho. Caminho de boas vivências.

domingo, 15 de novembro de 2009

E o desejo se encontra com a insônia

Abriu os olhos e se deu conta onde estava. O silêncio da noite, a luz do abajur criando um clima de aconchego e aquela cama enorme e vazia. Vazia dele.
Despertou quando virou naquela rotineira mania de abraçar o corpo dele em determinado momento, no meio do sono e dos sonhos. Acostumada a passar a perna por cima do seu quadril e descansar a coxa ali e abraçar as suas costas. Desta vez quando virou abraçou o ar. Ele não estava ali.
Era a primeira noite sem ele. Claro que já haviam dormido separados nestes anos, entre uma viagem ou outro de um deles. Desta vez era diferente, o tempo seria mais longo.
No mesmo instante sentiu a fisgada física da saudade, do desejo, entre os lençóis, que ainda mantinha o cheiro dele. Enterrou o rosto no travesseiro e aspirou o ar impregnado do cheiro másculo.
Eles costumavam acordar o outro no meio da noite para se amar. A madrugada era feita para o amor preguiçoso, devagar e explorador, entre uma sonolência e um desejo despertando. Com a quietude lá fora, como testemunha, enquanto a cidade dormia.
Nas outras horas o amor era necessidade pura.Os anos juntos não diminuiu o tesão, a parceria entre eles só aumentou a vontade.
Inquieta, não conseguiu mais dormir. Virou para o lado, mas o calor já esquentava o seu corpo, a sua memória e seus sentidos.
Levantou, nua como sempre dormia, e percorreu a casa no escuro, encostou o quadril na soleira da porta do escritório dele e lembrou as inúmeras noites em que parou ali contemplando o seu homem enquanto lia ou estudava, concentrado no seu trabalho. Várias vezes invadiu aquela sala de forma silenciosa e passou a mão pelos seus cabelos cor de trigo, beijou a sua nuca e ele concentrado se surpreendia com sua presença, olhava indeciso se era uma visão e de repente abria aquele sorriso perfeito naquela boca carnuda. Aquela boca feita pra lhe dar o prazer dos beijos molhados. O mundo parava. Era o sinal sutil de que necessitavam um do outro. A tensão cravando as suas unhas no ar. De repente aquele homem sério e envolvido em seu trabalho se transformava no amante possessivo e exigente que ela adorava compartilhar jogos exóticos.
Entrou de mansinho.Sentiu o cheiro dele quando passou a mão pela mesa, seus pertences espalhados como se ele tivesse saído dali a poucos minutos. Aquela mesa que, na urgência do sexo, eles empurravam tudo e se amavam ali mesmo naquela madeira dura e áspera, sem importar o lugar, sem tempo para prorrogar a necessidade dos seus corpos. Na fome da carne.
Suspirou, fechou a porta devagar e bloqueou seus pensamentos.
Já estava amanhecendo e era preciso começar o dia de agenda cheia.
Para sua sanidade era relevante manter fechada algumas portas para agüentar o inverno dos próximos seis meses.

domingo, 8 de novembro de 2009

Ela, a partida e ele

Eles passaram a noite entre carícias, sussurros, risadas e amor, às vezes urgente e noutras selvagem, com ânsia e fome. Estavam famintos deles. Dormir era desnecessário, congelar o tempo era essencial. Não combinaram isto, mas havia um acordo tácito de prorrogar o tempo juntos.
Finalmente o tal dia chegou e por mais que imaginassem não estavam preparados para a emoção das últimas horas juntos. O assalto da dor, aquela fisgada de agonia pairando entre eles. O desejo, a fome, tudo misturado ao mesmo tempo agora.
Quando o dia começou a despontar ele, que nos últimos instantes estava encaixado no corpo dela, fez ela se virar e olhando nos seus olhos, na urgência da sua fome a estreitou nos braços e lentamente amou o seu corpo, a sua alma. Tocaram-se delicadamente em todas as partes, na intimidade dos locais que cada um sabia dar mais prazer ao outro. Amaram-se cansados e amarrados naquele gostar. Faziam isto sem coreografia ensaiada, focados em memorizar cada detalhe daquilo que seria somente lembranças nos próximos seis meses. A textura da pele, o cheiro, a voz aos sussurros e os gemidos. Sem a urgência do toque, na calma das sensações.
No caminho para o aeroporto o silêncio tinha vozes e para quebrá-lo, às vezes, ensaiavam um assunto ameno que se perdia depois de uma tentativa de diálogo. A tensão reinava por ali.
A ânsia de perder a imagem, os seus traços e seus trejeitos tão peculiares fazia com que se devorassem em olhares, olhares carregados de necessidades que sabiam que surgiria na ausência um do outro.
No balcão da companhia aérea ela observou o seu rosto mais uma vez e percebeu a tensão da sua boca, aquela boca que há poucas horas vagava pelo seu corpo lhe dando prazer, agora uma linha fina, reta e imóvel em sintonia com a mandíbula dura. Sabia que ali, morava um firme propósito, o de não chorar. Conhecia ele do inverso e do avesso e entendia que ele era o lado forte do time, que se ele desmoronasse ( e ela sabia que por dentro era o que acontecia) ela cairia e tudo se tornaria um caos. Num pêndulo, um dos lados tem que aparentar mais força. Este, naquela situação, era o papel que cabia a ele.
Eles odiavam despedidas então o combinado é que não haveria grandes cenas. Seria uma cena carinhosa, mas nada a la Casablanca. O abraço foi forte, aquela morena pequena e aquele loiro alto de olhos de uma imensidão azul. Ela se agarrou naqueles ombros largos e mais uma vez pensou como seus corpos se encaixavam de forma perfeita. Ele se perdeu naqueles cachos castanhos e desejou levar pra sempre aquele cheiro tão dela quando encostou e cheirou o seu pescoço, pela milésima vez. Em seguida lembrou que, às escondidas, colocou o perfume dela na mala para eternizar a sua memória olfativa nos momentos de saudade apertada.
A voz trancou para os dois, tamanha era a emoção, então se viraram para lados opostos.
Ela deu dois passos e não resistindo olhou por cima do ombro. Sentiu o cheiro dele bem perto, se virou. Ele colocou uma mão no seu pescoço enquanto que a outra mão puxava a cintura dela, pressionando para perto dos seus quadris. Ela riu, um risinho nervoso e se perdeu naqueles olhos. Beijaram-se com voracidade, esquecendo todos que estavam por perto. O tempo congelou e ele, com voz embargada, disse que seria difícil, mas o amor deles o alimentaria. Ela assentiu com a cabeça, não conseguiu falar, mas ficou tranqüila, pois ele sabia o quanto ela o amava. Não havia dúvidas entre eles, somente a confiança extrema entre parceiros de um grande time.
Então ele se foi e ela calmamente se dirigiu para o estacionamento. E ao som de Calling You na voz de George Michael, deu a partida e tomou o caminho de casa.
Em paz, por entender que ele tinha que ir para voltar para ela, mais tarde.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Pela liberdade de não ter puxado a ninguém


Kurt Halsey

Me causa desconforto quando alguém fala que o X puxou a mãe, que o Y é igualzinho ao tio avô e por aí vai desfiando crenças e esquemas criando sugestões na cabeça das pessoas, desde a mais tenra idade. E isto é muito comum nas famílias.

Li outro dia num artigo do Flavio Gikovate que a dinâmica dos filhos é mais ou menos assim: num casal de personalidades opostas, o primeiro filho opta, inconscientemente, pela personalidade de um dos dois e o segundo filho se opõe à escolha do primeiro.

E o terceiro, se existir, como fica? Descompensa geral? É o estranho no ninho de mafagafinhos?

A regra é esta? E por acaso, personalidade tem cadastro de referências? É jogo pra ter regra?
Certo somos feitos daquele mapa mental de genética + personalidade + experiências, mas dá pra se ter liberdade de ação e fugir da pressão dos arquétipos.

Curiosamente me vi pensando nisto em relação a minha família e eu ser a segunda na "dinastia". Realmente era o oposto do meu irmão, mas neste caso nos completávamos. Sendo assim, escapei da regra que aquilo que nos atrai no oposto é o que nos separa mais tarde. Regra esta que acredito e muito para amores mundanos não amores parentais.

Éramos opostos que mais tarde não pesou e nem nos separamos pela forma diferente de ver e viver o mundo.